A concessão de veículo pela empresa ao empregado é um benefício relativamente comum no mercado corporativo, especialmente em funções que exigem deslocamentos constantes, visitas a clientes ou representação externa. No entanto, essa prática envolve implicações jurídicas relevantes que merecem atenção, sobretudo quanto à natureza da utilidade fornecida e seus reflexos nas obrigações trabalhistas e previdenciárias.
Nos termos do artigo 458 da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), integram a remuneração do empregado, além do pagamento em dinheiro, as chamadas prestações “in natura”, como alimentação, habitação, vestuário ou outros bens e serviços habitualmente fornecidos pela empresa ao empregado, por força do contrato ou do costume. Essas utilidades são denominadas salário-utilidade quando representam uma forma de contraprestação pelo trabalho realizado.
Assim, o fornecimento habitual de um veículo ao empregado pode ser enquadrado como parcela salarial se configurar vantagem econômica que substitui ou complementa o pagamento em dinheiro, sobretudo quando não for indispensável à atividade desempenhada. O uso do veículo para fins predominantemente pessoais, sem que haja exigência de deslocamento funcional, tende a reforçar essa caracterização remuneratória.
Contudo, a mesma norma e a jurisprudência consolidada do Tribunal Superior do Trabalho (TST) também reconhecem exceções importantes. A Súmula 367, item I, do TST dispõe que veículos fornecidos pelo empregador não têm natureza salarial quando forem indispensáveis para a realização do trabalho, ainda que eventualmente utilizados pelo empregado para fins particulares. Nesses casos, a utilidade tem caráter instrumental e indenizatório, não sendo considerada como forma de retribuição pelo serviço prestado, mas sim como meio para viabilizar sua execução.
A jurisprudência trabalhista é clara em exigir que, para afastar a natureza salarial do benefício, o empregador comprove que o fornecimento do veículo está diretamente relacionado à função desempenhada pelo empregado, sendo necessário e inerente à sua atividade profissional. A habitualidade, por si só, não descaracteriza o caráter indenizatório, desde que haja essa vinculação objetiva com as necessidades do cargo.
Do ponto de vista prático, empresas que optam por fornecer veículos corporativos devem atentar-se a alguns pontos essenciais:
- Formalizar o fornecimento do veículo em contrato ou política interna, especificando expressamente sua finalidade funcional e sua natureza não remuneratória;
- Controlar a destinação do veículo e restringir, sempre que possível, seu uso exclusivamente para fins profissionais;
- Evitar substituições implícitas de salário por utilidades, o que pode configurar fraude trabalhista;
- Registrar e documentar a necessidade do benefício para o desempenho das atividades do empregado, inclusive com eventuais reembolsos vinculados a quilometragem e uso corporativo.
A interpretação dos tribunais tem evoluído no sentido de considerar a finalidade prática da utilidade concedida. O fornecimento de bens ou serviços com o único objetivo de viabilizar a prestação do trabalho, mesmo que concedido por prazo indeterminado, tende a ser aceito como benefício não remuneratório, desde que não haja elementos que indiquem o contrário.
Por isso, a avaliação sobre o enquadramento jurídico do benefício de veículo fornecido pela empresa dependerá sempre da análise concreta das circunstâncias, da documentação que regula a relação e do uso efetivo do bem pelo trabalhador.
Em caso de dúvidas sobre a implementação ou revisão dessa política, é altamente recomendável a consulta jurídica prévia, visando mitigar riscos de passivos trabalhistas e garantir segurança jurídica à empresa.
Por Julia de Carvalho Voltani Boaes