Na terça-feira, dia 09 de setembro, a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, ao julgar o REsp 2.124.424, decidiu de forma inédita e majoritária, que o acesso aos bens virtuais de uma herdeira falecida deveria ser feito por meio da figura de um inventariante especializado, ou como a própria decisão classificou como um “inventariante digital”.
Diante da ausência de regulamentação legislativa específica no ordenamento jurídico brasileiro, a Ministra Nancy Andrighi, que teve seu voto acompanhado pela maioria do colegiado, entendeu pela possibilidade de acesso, pelos herdeiros, aos bens digitais deixados pelo falecido, desde que observados os princípios da dignidade da pessoa humana, da intimidade e dos direitos de personalidade e que esse acesso poderá ser viabilizado de forma técnica e juridicamente possível através da figura de um “inventariante digital”.
Esse profissional especializado, cuja atuação estará condicionada à prévia autorização judicial, bem como submetido ao dever de sigilo, teria a responsabilidade de:
- Identificar e acessar o patrimônio digital do falecido, como arquivos armazenados em nuvem, contas de e-mail, redes sociais, entre outros, incluindo a identificação de conteúdo passíveis de monetização;
- Classificar os bens digitais em transmissíveis e intransmissíveis, conforme sua natureza e relevância jurídica;
- Preservar os direitos da personalidade do falecido, evitando exposição indevida de conteúdos íntimos ou confidenciais.
Dentre os bens digitais transmissíveis destacam-se documentos eletrônicos relevantes como contratos, certidões, arquivos pessoais, fotografias, vídeos armazenados em nuvem ou dispositivos, criptomoedas e ativos financeiros digitais, direitos autorais sobre obras digitais (textos, músicas, imagens), contas de serviços digitais com valor econômico, como plataformas de armazenamento, marketplaces, programas de fidelidade.
Muito embora a decisão da Ministra tenha sido seguida pela maioria o colegiado, oportuno dar destaque ao voto do Ministro Ricardo Villas Bôas Cuevas que divergiu parcialmente da relatora, pois em seu entendimento a identificação dos bens digitais com aferição de valor patrimonial é medida própria do processo de inventário devendo ocorrer no próprio juízo do inventário, sem necessidade de ação autônoma.
Manifesta-se, inclusive, contrariamente à criação obrigatória de figura específica de “Inventariante Digital”, por entender que tal medida comprometeria o princípio da sucessão universal previsto no Código Civil, além de representar entrave prático à tramitação dos inventários.
Tomando por base a jurisprudência internacional, incluindo decisões oriundas da Alemanha, Espanha, França, Itália e Estados Unidos, o voto vencedor reconheceu a transmissibilidade da herança digital aos seus sucessores, equiparando os bens digitais aos bens analógicos no que tange à aplicação das regras sucessórias, podendo adotar providências necessárias ao acesso a tais bens do falecido, ressalvando-se a possibilidade de incidente processual apenas quando estritamente necessário.
A decisão foi especialmente relevante, pois abre caminho para que o ordenamento jurídico brasileiro possa lidar de forma mais adequada com o direito sucessório em temos de intensa digitalização, um tema complexo e delicado, que envolve questões importantes como a proteção de dados, a privacidade e a intimidade do falecido, que embora não regulamentado em sede legislativa, trata-se de um tema que não pode ser preterido nos debates jurídicos, por representar uma demanda social contínua e cada vez mais relevante.
Por Glícia Dougliane Paiva Espósito